Eu já estava no segundo País do meu mochilão de final de intercâmbio e até ali a viagem estava sensacional.
Eu havia conseguido guardar mais dinheiro do que o planejado mas nem por isso me dei o luxo de animar com isso. Sabia que a Italia, pra onde iria na sequencia, era cara, principalmente na Costa Amalfitana, uma região badalada. E de qualquer forma, já estava me acostumando a comer sanduíches naturais, com bastante tomate, ovo cozido, e aquilo me mantinha durante as tardes e noites. A única refeição que eu ia pra restaurante era o almoço, o resto tudo era sanduíche e um achocolatado.
O projeto na França
No mês anterior eu havia participado de um projeto voluntário do Youth in Action, numa organização chamada SOLAFRIKA. Fiz um relatório para a Universidade do Minho, como eles sempre pediam, a respeito do intercâmbio, as instalações e o que aprendemos nos dez dias de projeto. Talvez vocês já tenham notado nos posts, que eu me apego muito facilmente às pessoas. Com o pessoal da SOLAFRIKA não foi diferente.
Os organizadores dos projetos são sensacionais, gente do bem que realmente procura oferecer oportunidades para que os jovens reflitam sobre temas relacionados ao respeito à natureza e inclusão social. E por conta dessa pegada dos projetos, eles acontecem numa pequena cidade do interior da França chamada Bedéille, num grande casarão antigo, e os participantes ficam acampados aos fundos, num belo gramado. Muita coisa se plantava ali e havia uma espécie de escambo com as fazendas vizinhas. Muito legal mesmo.
Enfim, elogiei tanto a organização do projeto e os responsáveis que, quando o pessoal da Universidade do Minho soube que a organização iria realizar outro projeto, logo avisaram pra me inscrever. E foi por conta desse convite que eu resolvi fazer o “mochilão da partida”, como o apelidei.
Comprei a barraca para participar do primeiro projeto e, como teria que levá-la comigo para esse segundo, pensei em fazer o mochilão só procurando campings, aproveitando o verão europeu pra fazer coisas diferentes do que tinha feito até ali. Cheguei na França por La Rochelle, no dia 12 de Julho. Muito atrapalhado, peguei um ônibus e fui pra Île de Ré para acampar uns dois dias e já ir pra Toulouse, de trem, onde encontraria meus amigos Portugueses para realizarmos o projeto. Os 14 primeiros dias da viagem já me empolgaram demais para o que estava por vir.
Brussel
Fui o último a deixar o camping do projeto. No dia anterior, tinha ido com os organizadores numa lagoa com água geladíssima, mas, como toda água gelada, parece que me lavou a alma. Uma boa despedida desse País e dessas pessoas que me encantaram demais. Deixei a França no dia 26, perto das 19 horas e cheguei em Brussel, na Bélgica, lá pelas 20:30. Tinha descolado um host através do Couchsurfing e decidi, pelo menos na capital, ficar hospedado mais no centro da cidade. E outra, a minha passagem pela cidade seria bem rápida, só por um dia, e seguiria para Leuven, então seria mais conveniente.
Como já falei em outros posts, o barato de se hospedar com Chouchsurfers é que você eventualmente encontrará gente com disponibilidade – e paciência – para te mostrar a cidade. Com o Sven, encontrei mais do que um host, encontrei dicas e inspiração. Ele é uma pessoa que viajou muito e tinha muita história pra compartilhar.
Como passamos o dia inteiro perambulando, conversamos muito. Contei por onde eu já tinha andado, por onde ainda queria andar, o que eu gostava de fazer, enfim, todo aquele repertório de coisas que a gente faz quando conhece alguém pela estrada. Demos uma volta grande: passamos pelo Museu das Forças Armadas, pelo Parlamento Europeu e, entre outras paradas menos significativas – até porque tomamos tempo para passear tranquilamente por estes dois lugares – fizemos um happy hour no famoso café delirium, conhecido por servir mais de 2.000 tipos de cervejas do mundo inteiro. Era perto das 5 horas da tarde.
Chegando em casa, comemos alguma coisinha e continuamos o papo. Lá pelas tantas, comentei com eles sobre a minha chegada em Portugal, quando havia conhecido um casal da Polônia no albergue onde pernoitava até encontrar um apartamento. Eles vieram da Polônia até Portugal só pegando carona. Me contaram que é muito legal a forma como as pessoas os ajudavam, inclusive com comida e até mesmo deixando eles dormirem com suas barracas no canteiro de suas casas. O Sven percebeu o meu entusiasmo ao contar a história e aí comentou que muitos jovens que ele havia hospedado faziam isso – viajar de carona – e que eu deveria tentar fazer o mesmo. E logo já apareceu com a caixa de cereais, toda aberta e ao contrário, para eu escrever o destino.
Me deixei tomar pelos incentivos deles e quando vi já estava marcando no mapa os melhores pontos indicados pelo Sven. O sol já tinha se posto, a mochila já estava quase pronta para a partida do dia seguinte e já tinhamos jantado também. Resolvemos dar mais uma volta e, apesar do mau tempo, arriscamos ir até o Atomium. Chegando lá, MAS UMA CHUVARADA. Fiz umas fotos e já voltamos correndo pra casa, ensopados.
A primeira carona da vida
Na outra manhã já parti. Com a minha mochila nas costas, o chapéu da Super Bock que me acompanhava na jornada e o mapa. Peguei o metro e fui em direção ao ponto indicado pelo meu host. Fiquei andando de um lado para outro, na tentativa frustada de me encontrar. Por sorte, mais uma vez fui ajudado por um pedestre. Um ciclista, na verdade. As palavras dele: “Eu vi que tu estava com o mapa e com cara de perdido, daí resolvi vir te ajudar”. Ele que me deu a preciosa dica de deixar a mochila com as bandeiras viradas para os carros, dessa forma elas endossariam o meu pedido, o que me ajudou a viajar de carona pelo Chile, em 2014.
Fiquei do lado direito da avenida que levava à saída da cidade, em direção a Leuven. Era uma avenida larga, com três ou quatro pistas, o que me deixava aflito porque muita gente que passava do lado esquerdo da avenida, buzinava e acenava. Eu os seguia com os olhos, na esperança que fossem parar, mas acho que só estavam me cumprimentando. Nem por isso mudei de lado, continuei ali. Acho, na verdade, que aquele chapéu me conferia um ar de legítimo mochileiro, e aquilo devia causar – eu gosto de pensar isso, pelo menos – alegria nos motoristas.
Fiquei lá por alguns 20 minutos e nada de carona. Sequer interesse real de alguém parar e perguntar alguma coisa. Notei que um pouco mais pra frente, no fluxo da pista, havia um semáforo. Então fui lá pra perto na esperança de que os motoristas pudessem ver a placa com mais atenção e tempo. Notei que na rua perpendicular à avenida, parado no semáforo, havia um carro com duas pessoas, e apontavam para mim. Fiquei observando eles porque pareciam que estavam tentando ler o meu papelão. Então, quando eles passaram por mim, acompanhei com as mãos para que pudessem ler. Não deu outra.
Eles pararam o carro a uns 100 metos de mim. Até aquele momento eu não tinha certeza se eles pararam “pra mim”, então fiquei olhando só, observando de longe até que eu tivesse a certeza . A última coisa que eu queria era “assustá-los”. Com os piscas ligados, o carona abriu a porta do carro e com um sorriso inexplicavelmente simpático fez um sinal, me chamando. Antes de tomar a mochila nos ombros, apontei pro meu peito no clássico sinal de “eu? eu mesmo?”. Ele confirmou com a cabeça e com uma gargalhada mais simpática ainda. Tomei a mochila nos braços e estava para se iniciar a minha primeira viagem de carona.
Na hora que entrei no carro eu não tinha nem palavras para agradecer a gentileza deles. Na verdade as palavras estavam lá, mas essa realidade – infelizmente – é tão distante da nossa aqui no Brasil que aquilo tudo parecia um grande sonho pra mim. Vencido aquele momento “caralho, isso tá acontecendo de verdade”, comecei a contar um pouco de mim e do que eu queria fazer naquela viagem. Eram dois irmãos e quando contaram a história deles, tive vontade de mandar eles pararem o carro. Não, nada de perigo ou coisa parecida.
Eu tenho a frequente mania de achar que eu não sou merecedor de viver certas coisas. Não que eu não seja merecedor, porque sei meu esforço pra conseguir que as coisas aconteçam, mas que talvez outra pessoa pudesse precisar mais do que eu. Com a carona, não foi diferente. Eles eram irmãos. O motorista, bastante fluente em inglês me contava a história da família, enquanto o seu irmão, na carona, concordava e repetia apenas algumas palavras em inglês.
Eles eram do Tibete e haviam saído do País pois estavam sendo perseguidos pelas forças armadas da China. Eles juntaram recursos e montaram um restaurante de comida asiática bem no centro de Leuven. Eles guardavam o mínimo pra si e mandavam a grana de volta pra alguns familiares que ainda estavam lá. Nessas horas a vida te dá um tapa na cara pra largar mão de ser mesquinho com certas coisas, né? A garganta deu um nó, o coração apertou e não pude segurar umas lágrimas discretas.
Mas respirei fundo e procurei explorar o assunto do restaurante. Eles me falaram sobre Leuven e comentaram que gostavam muito da Bélgica. As pessoas eram educadas e simpáticas, e que eles já sentiam como se estivessem em casa. Eles me passaram o endereço e me convidaram para visitá-los enquanto estivesse lá. Por uma grande infelicidade acabei perdendo o papelzinho onde eu havia anotado e não consegui entregar a lembrança que comprei , como forma de agradecimento. Dei umas voltas a mais no centro da cidade na esperança de encontrar o lugar, mas infelizmente não consegui.
Parti para Antwerpen sem conseguir dar um abraço neles, nem dizer o quão grato eu estava pela carona, que representava muito mais do que o gesto em si, mas pelos ensinamentos daquelas histórias.