Cheguei em Talca sem hospedagem. Com a história de me perder em Valpo antes da saída e a súbita decisão de pegar um ônibus, não consegui me antecipar para falar nos grupos do Couchsurfing. Fui pro centro da cidade e procurei uma lan house para tentar a sorte com alguém. Não tive êxito. Então comecei a procurar por hostels, já que os campings ficavam bem afastados da cidade. Me perder pelo anoitecer não ia ser bom, então fui atrás de um albergue bem simples que tinha lido em alguns comentários pela internet.
O cheiro de mofo e as teias de aranha em alguns cantos me fizeram pensar que o quarto não via uma limpeza há tempos, mas, como dizia meu avô, quem tá na chuva é pra se molhar. Larguei minhas coisas e fui tomar um banho, me certificando de trancar bem a porta do quarto pra não correr riscos, principalmente com a câmera. Eu tinha a viagem inteira pela frente! A porta do quarto, por conta da fechadura antiga, daquelas com o buraco da chave que se consegue espiar para o lado de dentro, me fez lembrar das portas da casa onde cresci, em Ijuí, interior do Rio Grande do Sul. Mas as de lá não rangiam. Aqui, não só a porta, mas o assoalho do corredor, a cama, até o pequeno ventilador fazia um barulho engraçado. Eu continuava não me importando.
Saí pra comer e planejar minha partida da manhã seguinte. Nessa andança aí, passei por uma praça onde estava acontecendo alguma festividade de Natal, tal como se fosse um musical, e uma feirinha. Sentei em um lado da praça para poder fazer algumas fotos e gravar algumas cenas. Tinha muita família, e mesmo que meu estômago doesse de fome, fiquei por ali algum tempo tentando entender o que eles cantavam. Tentei iniciar uma conversa com uma moça que me perguntou o que eu estava fazendo, mas logo em seguida a criança que estava com ela começou a chorar e a conversa morreu. Aproveitei também o final do espetáculo e fui comer.
Susto em Vilches, mas nem tanto
O plano da minha passagem por Talca era simples. Dormir, tomar um café da manhã reforçado – porque havia passado os últimos dias, em Valpo, à base de sanduíches – e partir para o parque onde faria a trilha. Com tudo em mãos para a minha partida, eu procurei me informar onde seria um bom lugar para pedir carona e uma senhorinha muito simpática me disse para ir de ônibus urbano até o trevo de Vilches e de lá tentar carona. Só aceitei o plano porque ela me disse que ia pro mesmo lado e poderia me ajudar.
Esses ônibus que fazem esses rápidos trajetos entre as vilas vizinhas são pequenos. Me explicava a senhora, antes da nossa partida, que muita gente vem à cidade para trabalhar ou fazer compras e volta para “o campo” no final do dia. Era só o começo do dia mas o ônibus estava cheio. Nem tinha tanta gente, mas a quantidade de malas, sacos e caixas fazia todo mundo se espremer ali dentro. A minha mochila também.
Saltei do ônibus com um grito de gracias para a senhorinha que continuaria sua viagem. Assim que acomodei a mochila nos ombros e começava a caminhar para alcançar o trevo, escutei alguém chamando. Mesmo estando praticamente no meio do nada, tinha umas pequenas casas por ali, até um mini-mercado. Me virei para ver se era comigo e uma mulher perguntou se eu era Belga. Colei, na minha mochila, as bandeiras de alguns países pelos quais eu passei. A da Bélgica e da Itália estão bem evidentes, na parte de cima, e talvez por isso a conclusão precipitada da moça. Eu respondi, sorrindo, que aquelas bandeiras eram só enfeite, e que era Brasileiro.
Eu não sei bem o que ela queria, mas depois que eu respondi aquilo, ela só falou algo como “que bom” e fechou a porta. Fico imaginando se eu tivesse respondido que eu era Belga, o que teria acontecido. Continuei caminhando e dando risada da situação estranha.
Estava bem próximo do trevo quando um inseto começou a me incomodar. Espantei ele sem ver o que era e subitamente vieram dar cobertura outros dois ou três. Sabe, a gente, criado no interior, escutava com certa frequência ataques de abelhas, mesmo em áreas meio abertas. A primeira coisa que me vem na cabeça? F*deu, to sendo atacado por abelhas. Saí correndo feito um maluco, batendo no ar numa tentativa desesperada de me livrar daquilo. Com certeza era um ataque de abelhas! Um caminhão passou buzinando e eu atravessei a pista correndo, pensando em entrar em uma das casas da redondeza, e os malditos insetos ainda atrás de mim.
Ao chegar próximo da casa, encontrei uma árvore e rapidamente peguei meu chapéu e comecei a bater no ar com ele até que os insetos se afastassem. Durante uns cinco minutos eles me deixaram em paz, mas depois voltaram e notei que não eram abelhas, mas tipo umas moscas bem grandes que mordem. Não é nem picada, e também não dói. É como um beliscão bem levinho. Mas ô bichinho chato! Me acalmei e continuei caminhando com o dedo estendido.
A carona
O fluxo de carros em direção a Vilches era bastante baixo. Os poucos que passavam, não me davam muito ânimo e já planejava o que eu faria se não conseguisse a carona. Felizmente, uma família com o carro lotado resolveu parar e me ajudar. Larguei minhas mochilas e o tripé na parte de trás da camionete e entrei com um pouco de vergonha, porque eles precisaram espremer as crianças pequenas para que eu coubesse.
Essa carona foi muito legal porque era uma família de vovós. O vovô dirigia e tentava me falar sobre a região, as fazendas, as plantações. As vovós também tinham bastante interesse no que eu fazia, queriam me conhecer de verdade. Nessa altura meu espanhol tava um pouco mais desenrolado, então consegui explicar pra eles algumas coisas e porque eu sempre estava carregando a câmera. Uma das crianças se interessou e fiz umas brincadeiras com ela, pouco antes de ser reprimida pela vovó. Entre as minhas histórias, todos comentavam e davam suas opiniões., parecia que eu estava em casa.
Comentei que faria a trilha e logo o vovô me alertou para tomar cuidado. Ele me disse que apesar de não ser difícil, algumas partes da trilha são íngremes e que já haviam acontecido incidentes no parque. Eles iriam me deixar numa estrada que levava ao parque, e eu teria que andar alguns bons quilômetros até alcançar a entrada do parque, e por isso, me aconselharam veementemente a procurar um camping pra passar a noite e partisse de manhã cedo.
Eles me deixaram à beira de uma estrada batida. Todos se despediram com um ar de vovozinho com saudades da juventude, sabe? Quando talvez não tinham possibilidades de desbravar as coisas bonitas da vida para sustentar os seus. Bem comovente. Continuei na estrada despretenciosamente. Como o plano era parar, não me apressei. Eu estava numa estrada no meio do nada, cercado de mato, andando para um lugar que eu não conhecia. Pouquíssimos carros passavam ali, mas sempre que escutava algum barulho de motor na minha direção, eu tratava de esticar o braço para pedir carona. Depois não pedi mais porque nem eu sabia qual camping eu iria parar, então relaxei e continuei caminhando, sendo coberto pela poeira e espantando as moscas (e não abelhas) inconvenientes com uns galhos de árvore.
Lá pelas tantas alcancei umas pequenas casas que ofereciam hospedagem. Cheguei a cogitar a ideia, mas queria mesmo era acampar.
Quieres uno?
Não lembro o que exatamente me motivou a escolher AQUELE camping. Era um camping praticamente ao lado do outro. Acertei o valor para uma noite, apenas, e entrei. Precisava caminhar até a área de camping, um ou dois quilômetros da entrada. Ao chegar, escolhi um lugar protegido e montei a barraca. Comprei a barraca exclusivamente pra essa viagem. A outra que eu tenho é grande e pesada, demais para quem pretendia passar dias com a mochila nas costas. Essa, mesmo que eu tivesse que dormir cruzado nela para conseguir esticar um pouco mais as pernas, estava boa.
Eu tinha comprado alguns mantimentos antes da minha partida de Talca. Tá, mentira. Comprei só miojo. Ah, umas frutas e uma garrafa de água também. Trouxe comigo, desde o Brasil, um pequeno fogareiro, uma panela pequena, dois pratos e duas xícaras plásticas e um saleiro. A barraca e o saco de dormir e o isolante térmico também ajudavam no volume da mochila.
Acomodei toda a tralha dentro da barraca e saí caminhar pelo camping. O tio da recepção me falou que tinha um lago e que muita gente vinha passar o dia ali para se refrescar e voltava para a cidade, então fui atrás do dito cujo. Troquei de camiseta pra poder lavar a que eu vestia no percurso empoeirado e fui. Logo ali abaixo estava o tal lago, que eu acho que era mais um rio com água bem tranquila e gelada. Fiz umas fotos antes de sentar-me para lavar a camiseta. Deixei a câmera no tripé enquanto sentei na pedra e comecei a esfregar a camiseta, sem sabão nem nada. Fiquei imaginando as críticas da minha mãe e da minha tia, se elas estivessem me vendo fazendo aquilo.
Talvez atraídos pelo “equipamento” fotográfico, ou talvez pela minha brancura e porte físico de taquara, algumas crianças se aproximaram e, muito curiosos, perguntaram de onde eu era, o que eu estava fazendo. Mostrei pra eles a câmera, mostrei como eu fazia os vídeos e logo depois estendi a camiseta, coloquei a câmera no tripé e fui boiar um pouco.
Pouco tempo depois de sair da água, veio até a mim um dos garotinhos de antes e me ofereceu um cachorro quente. Eu dei risada, agradeci a gentileza e olhei ao redor, procurando quem havia me feito tal bondade. Logo ali atrás estava uma família me acenando com a alegria de amigos que não se viam há muito tempo.
Obviamente fui lá para agradecer a gentileza. Era um casal jovem, que procurava no camping um abrigo contra a louca e barulhenta correria da cidade. Realmente, é o que eu sempre procuro quando frequento campings por aqui, também. A conversa se estendeu. As crianças eram muito curiosas comigo. Se interessavam em saber porque eu falava estranho e se gargalhavam quando eu não conseguia dizer o planejado.
Fomos dar uma volta com as crianças rio acima, paramos numa outra lagoa para elas se divertirem na água. Aproveitei a oportunidade e fiz algumas fotos deles.
Depois do passeio, mais pro final do dia, eles me convidaram para jantar com eles. Fariam um churrasco e insistiram para que eu participasse. Sentamos todos perto da churrasqueira e conversamos mais e mais. Naquela altura eu imaginava que meu espanhol estava fluente. Eles conseguiam me entender – eu acho -, mesmo que volta e meia eu falasse alguma coisa em italiano. Quando falei dos meus planos de, no dia seguinte, sair cedo para fazer a trilha, eles me questionaram muito. Afinal, era dia 22 de Dezembro e passaria a noite de Natal no meio do nada, acampando sozinho, já que a trilha leva, pelo menos, 3 dias para ser percorrida.
Me fizeram, então, a proposta de ir para a casa deles, em Talca, dormir e comer bem nas noites seguintes, passar o Natal com a família e fazer a trilha depois. O Rodrigo também não me aconselhou a fazer a trilha sozinho, especialmente naqueles dias pois não encontraria ninguém no parque caso me acontecesse algo. Então aceitei o convite.
Como eles iriam embora ainda na mesma noite, combinamos de nos encontrarmos em Talca no outro dia. Conversamos bastante e eu ainda não acreditava que aquilo estava acontecendo. Será mesmo possível que existem pessoas tão mente abertas e do bem assim? A história fica ainda mais legal. Fica antenado nos próximos posts e dá um look aqui no vídeo pra ter algumas cenas dessa viagem.