Eu já tinha um amigo/irmão em Portugal. O Nuno Pedro (ou só Pedro, ou só Nuno) já me conhecia muito, e eu já o conhecia. Entre indas e vindas ao Bom Jesus, recepcionando outros intercambistas, compartilhávamos histórias, explorávamos os assuntos da vida e da existência humana. Quando ele me falou do projeto, fiquei animado.
Enviei no mesmo dia o meu currículo e uma carta de apresentação / motivação para formalizar a minha inscrição.
Sou um jovem italiano-brasileiro, cursando Ciências da Comunicação em Portugal já há oito meses. Na minha carreira profissional, trabalhei em meios digitais, fui programador e desenvolvedor de sites por mais de cinco anos e há dois anos trabalhava com a venda e negociação de projetos web. Porém, foi durante quatro meses à bordo de um navio de cruzeiros, em 2010, que comecei a me apaixonar pela aventura de conhecer pessoas e lugares diferentes.
Com a minha vinda à Portugal pude experimentar coisas novas e o contato frequente com pessoas de outras nacionalidades me motiva a conhecer mais sobre diferentes culturas. A automotivação somada ao entusiasmo em conhecer culturas e realidades diferentes fazem com que me mantenha focado em colaborar em tudo que posso. O espírito de equipe é sempre forte e procuro sempre integrar as pessoas em atividades, motivando-as e, por meu lado extrovertido, divertindo-as também. As adversidades estão sempre nos colocando à prova, mas se as vencemos ou não depende da nossa perspectiva e das nossas atitudes. Eu procuro sempre manter uma atitude positiva e otimista, em tudo que faço, tudo em que participo e compartilho.
Naquele mesmo dia, duas horas depois, meu coração, quase saindo pela boca, ficava doloroso ao ler que
Caro Gabriel,
Não posso por motivos de justiça social, considerar a tua candidatura, pois o prazo de candidaturas já teve o seu término no passado dia 18.
Penso que me compreenderás perfeitamente!
O email, com tom de consolo, terminava com “Estás hoje pelo carpe no karaoke? podemos conversar por lá!
Grande abraço, Ricardo Martins”.
O Carpe era um dos bares favoritos dos universitários de Braga, apelido retirado do nome oficial Carpe Noctem que significa aproveite a noite. Naquela noite eu não tinha muito motivo para aproveitar. Ainda com aquela dor no peito de quem está perdendo uma grande experiência, fui lá ter (como os Portugueses falam). O Pedro também estava lá. Quando finalmente encontrei o Ricardo e depois de ele me dar mais detalhes sobre o projeto (o que me fazia mais triste pois era fenomenal!), ele sorrindo me disse que havia um engano no email dele e existiam vagas abertas ainda, e por isso poderia ainda considerar minha inscrição.
A resposta definitava chegou três dias depois, por e-mail, e começava assim (os destaques são originais do remetente):
É com satisfação que te informamos que foste escolhido para integrar o conjunto de participantes que irão actuar no Intercâmbio Jovem “Visual Impairment” a decorrer nos dias 14 a 24 de Junho de 2013, na França.
Enviamos em anexo um conjunto de documentos: o programa do projecto, a descrição do mesmo e um infopack do projecto que aconselhamos uma leitura atenta.
Abri o tal do infopack na mesma hora, ansioso já pela viagem que só viria acontecer dali 2 meses. Antes de terminar a sua leitura completa e contrariando o conselho do Ricardo de fazer uma leitura atenta, eu já comecei a imaginar o lugar, as pessoas e tudo o que iria aprender durante aqueles dez dias. O coração apertava porque também seriam meus últimos meses em Portugal e já sentia falta de tudo ali.
Desde aquela hora percebi que os organizadores franceses eram muito amigáveis. O infopack era bastante extenso, cheio de detalhes, mas era escrito de uma forma tão amigável que eu quase conseguia escutar eles explicando tudo, mesmo sem nunca ter ouvido a voz deles, sequer. As carinhas formadas por pontos e parênteses 🙂 eram comuns nos textos e eles até mesmo brincavam com alguns estereótipos que o mundo tem dos Franceses. Estranhamente eu já me sentia, de alguma forma, amigo daquelas pessoas.
Sobre o Youth in Action
Pra falar bem a verdade, na altura eu nem sabia direito o que era o tal do Youth in Action, mas gostei da temática do projeto e por isso me havia inscrito. Agora que eu sei, vou explicar: o Youth in Action é um programa Europeu que promove o intercâmbio cultural e social entre jovens dos países integrantes da União Europeia. Só pude participar porque existiam vagas disponíveis para representantes de Portugal. Acredito que o fato de ser cidadão Italiano também deve ter sido fundamental para viabilizar legalmente a minha participação. A União Europeia que financia o projeto e também paga 70% das despesas de locomoção dos participantes. Uma excelente oportunidade para viver uma cultura diferente, conhecer pessoas novas e compartilhar experiências e conhecimento.
Bédeille, a cidade de campo
Bédeille é uma pequena cidade – eu acredito que pode-se chamar de vila, inclusive – com apenas 3.85km² (foi a Wikipedia que me disse). Fica no Sul da França, na região denominada Pyrénées-Atlantiques. Aliás, isso não é região, é um departamento – que eu acredito que seja como um estado nosso, aqui no Brasil. O nome é dado a esse departamento por conta da cadeia de montanha conhecida como Pyrénées, na fronteira com a Espanha, que separa o velho continente da península ibérica.
Eles nos haviam dado um imeeenso – com três “e” porque era grande mesmo – tutorial de como fazer para chegar até a cidade. Bom, na verdade chegaríamos na cidade vizinha, a estação de trêm mais próxima da vila. Era teoricamente simples, mas o simples se torna um tanto desafiador quando você está num País cuja língua você não fala, no interior do interior do interior onde raramente encontra-se pessoas que falem inglês. Mas isso sempre me animava mais ainda.
Encontraria as minhas parceiras Portuguesas lá só, visto que tinham parentes franceses que moravam lá perto e iriam com bastante antecedencia para poder aproveitar as férias de verão. Encontrei uma passagem baratíssima de Porto para Bordeaux, um dia antes do início do projeto, e mesmo que 70% estivesse coberto pela UE, optei por esse voo, afinal, eu teria que pagar os 30% restantes, né? No dia 13 de Junho eu recebia o email da Julie, uma das integrantes da SOLAFRIKA, perguntando se estava tudo certo para nossa chegada e dando o seu telefone para que pudéssemos falar com ela em caso de necessidade. Eu recebi esse email caminhando para o avião.
Visual Impairment
O projeto era sobre deficiência visual. Eu saí de Portugal com uma expectativa totalmente errada do que viveríamos. Expectativa errada não… mas eu não fazia ideia de como aquelas atividades que estavam descritas iriam me afetar. Eu sei que é meio chato ficar colocando essas informações extras, mas nesse caso acho relevante para que sirva também de inspiração para quem quiser. No documento estava (tradução livre):
O principal objetivo deste projeto é desenvolver a tolerância e cooperação entre jovens europeus de diferentes origens, possibilidades e capacidades, deficientes-visuais e visuais. Durante o intercâmbio, as atividades devem promover a cooperação e assistência mútua entre os participantes.
Os “não deficientes” terão a oportunidade de descobrir e explorar as limitações de tal deficiência, mas também para observar as capacidades e os meios utilizados para superá-la. Bem como para os deficientes visuais, eles serão capazes de praticar novas atividades e alcançar novos objetivos graças à ajuda de outros.
Uma experiência marcante
O primeiro dia foi basicamente de quebra-gelo: Portugueses, Tchecos, Eslovenos, Estonianos, Franceses, todos conversando, se conhecendo, tentando entender um ao outro naquela salada de frutas de sotaques entre as mímicas e risadas – bastante delas. Os organizadores já nos apresentaram o cronograma e explicaram o funcionamento dos times. A limpeza da casa, a preparação das refeições, os tempos de intervalo, tudo tinha hora de início e fim, e cada time tinha uma responsabilidade que alternava entre os dias.
Quando eu digo uma experiência marcante, é força de expressão. Na verdade foram muitas. A começar pela acomodação e pelo “estilo” do lugar. Estávamos em uma pequena fazenda – ou chácara. Um casarão muito antigo, de paredes grossas repletas de buracos e outras marcas do tempo, de porta de madeira sem fechadura que mostrava a segurança e tranquilidade da pacata vizinhança.
A casa tinha dois pisos. No superior estavam três grandes quartos com colchões e camas e o escritório, enquanto na parte de baixo estavam a sala de estar junto a uma grande mesa de jantar, a despensa e um pequeno banheiro com um chuveiro, já no corredor que levava à parte externa.
Um telhado simples protegia a cozinha e as mesas improvisadas onde faríamos todas as refeições, e mais além havia um belo gramado e uma horta.
Apesar dos quartos e colchões da casa, estávamos todos acomodados em barracas, complementadas por um tipo de oca e uma grande tenda construída pelos próprios organizadores – quase uma casa de tão grande. Sério! Os banheiros eram secos, isto é, latrinas. Eram cercados e cobertos para garantir a privacidade do usuário, mas o trono era de madeira. A serragem substituía a água e estava dentro de um tambor. A descarga era um pote de serragem por cima do presente deixado. Existia também um pequeno trailer com outros dois chuveiros.
As minhas colegas portuguesas, durante o jantar do primeiro dia, ficaram assustadas talvez pelas instalações e me chamaram para conversar. Perguntaram-me o que eu havia achado do lugar e das condições de tudo. Eu não hesitei e falei minha verdadeira opinião, que não achava ruim e não via problema em nenhum aspecto do projeto até ali. Elas tinham uma opinião diferente e desistiram do projeto naquela mesma hora. Os organizadores deram carona para elas até a cidade mais próxima onde pegariam um trem para reencontrar os parentes. Eu não me comovi e acho até que relaxei mais depois disso, afinal, elas não eram as pessoas que o projeto precisava.
Os quebra-gelo
Desde aquela primeira noite eles avisaram que a gente teria que se entregar completamente ao projeto e deixar os pré-conceitos e preconceitos de lado para fazer com que tudo fluisse de acordo. Na primeira manhã fizemos aquelas famosas brincadeiras para conhecer um pouco sobre o outro e tirar aquela vergoinha que predomina em grandes grupos de desconhecidos. Todos descalços na grama, nos largamos no chão imitando animais e seus sons.
Nessas horas, confesso, volta e meia sou inconveniente e sem noção.
Tinha conversado muito com os Tchecos e me identifiquei com eles. Gente da paz, de bom coração e de uma simplicidade tremenda. Na hora que começamos a imitar os bichos, notei que um grupo estava meio envergonhado. Sem pensar muito, peguei esse meu recém amigo, que estava de quatro imitando algum animal, e “montei” nele tal como numa cena de acasalamento. Todos rimos e ficamos vermelhos, mas o grupo se soltou mais depois daquela brincadeira.
O almoço era preparado pelo grupo seguindo a agenda do dia. Existia uma tabela desenhada num cartaz, na entrada dos fundos da casa, bem visível para que todos soubessem as suas responsabilidades naquele dia. Era sempre uma fartura de comida, com muitas saladas e quase nunca carne.
As brincadeiras de quebra-gelo aconteciam todas as manhãs para tirar a preguiça da moçada, ativar a energia positiva e começar o dia com ânimo e alegria.
Integração com os locais
No dia seguinte, pelo café da manhã, descobrimos que iríamos participar de um encontro de alguns amigos onde também teria uma espécie de feira de jogos. O desafio era que tais jogos pudessem ser praticados por deficientes visuais, sem dificuldades.
Dedicamos a parte da manhã para a criação desses jogos e outras brincadeiras com a ajuda do pessoal do projeto, uma vez que eles tinham já alguns jogos criados de outros projetos. Algumas das atividades eram coletivas e exigiam que o grupo ajudasse para que o participante pudesse completar o jogo – essas eram as mais divertidas. Eram jogos realmente simples, artesanais, construídos com pedaços de madeira, cordas, copos plásticos, tentando reaproveitar o máximo de coisas que encontrávamos no cotidiano.
A feira/encontro estava cheia. Ela foi realizada numa outra chácara, não muito longe de onde estávamos. Todos levaram salgados, bolos, então acabava sendo tal como um picnic. Todos procuramos interagir com os locais e eles tinham bastante curiosidade em nos conhecer também. A cerveja facilitava bastante esse processo.
Começamos a experimentar os jogos. A curiosidade e a liberdade que tínhamos naquele lugar nos desinibiam. Todos estavam ali para aprender sobre a deficiência visual. As crianças, que também brincavam, tentavam nos explicar, em francês, o funcionamento de alguns jogos, mas aí os organizadores interviam como intérpretes para nos ajudar.
O Volcy, que era da França e deficiente visual, e o Thomas, da República Tcheca, que também tinha certo grau de deficiência visual mas enxergava, também participavam das brincadeiras e nos explicavam também. Ambos estavam participando do projeto conosco.
Essas atividades serviram de aquecimento, por assim dizer, para o que viria nos próximos dias.
O Teatro do Oprimido
A primeira atividade daquele dia foi uma conversa sobre as situações desconfortáveis – e até revoltantes – que presenciamos com os deficientes visuais. Numa roda, cada um falava como era em seu País, na sua cidade, e como a gente via que poderia ser melhor. A Britta, que era uma das membras da Estonia, trabalhava com a educação de cegos e surdos, e tinha muita coisa realmente de arrepiar para contar. Afinal, como se ensina uma criança que não pode enxergar ou ouvir? Todos nós compartilhamos situações e eu trouxe a realidade do Brasil, da Itália e de Portugal, que eram Países pelos quais eu tinha morado e pude perceber diferentes realidades.
Depois dessa roda de discussão, nos foi proposta uma atividade relativamente simples: em duplas, de frente um para o outro, devíamos simular movimentos de violência contra o outro membro da dupla, o qual deveria transformar essa violência em algo positivo e responder com outro gesto violento, que seria transformado em uma ação positiva e assim sucessivamente. Dessa forma, todos projetavam ações violentas, que eram transformadas em ações positivas, e recebiam ações violentas transformando-as em ações positivas também.
A reflexão proposta por aquela atividade era que na sociedade, todos nós somos opressores e oprimidos. Temos que ter a consciência de todos nossos atos e saber – ou pelo menos imaginar – as suas consequências.
Esse exercício foi uma introdução ao Teatro do Oprimido, uma técnica teatral envolvente e interativa, desenvolvida por um Brasileiro, Augusto Boal (eu não sabia nem da existência disso até aquela hora). Aquele dia seria totalmente dedicado a isso.
Divididos em grupos, elaboramos cenas do cotidiano inserindo um personagem com deficiência visual. A dinâmica funcionava assim: o grupo encenava a situação com uma série de “problemas” (as ações opressoras) e congelava. A plateia, então, devia transformar as ações opressoras em algo positivo, podendo movimentar os personagens. Nos divertíamos muito fazendo aquelas cenas e elaboramos coisas bem criativas. Iríamos apresentar a peça para alunos de uma pequena escola da cidade vizinha.
No fim, o contexto das cenas foi:
- um deficiente visual no transporte público;
- uma criança deficiente visual em meio a outras crianças, jogando bola;
- uma criança deficiente visual conhecendo sua turma na sala de aula.
Eu ia escrever aqui brevemente os desafios (e as opressões) de cada cena, mas vou deixar esse pra você que tá lendo, tá?
Bom, chegou o dia da apresentação e estávamos todos nervosos e ansiosos. Chegamos à cidade e fomos direto à escola. Precisaríamos de cadeiras para algumas cenas e as pegamos emprestadas da escola. Nos reunimos todos numa pequena praça poucos metros de lá, enquanto as professoras traziam as crianças.
Eram pequeninas, bastante ativas e curiosas para saberem o que estava por vir. Nos olhamos com aquela cara de “oowwnnnnn”. Os integrantes do comitê organizador nos apresentaram e explicaram para as crianças como iria funcionar a brincadeira e começamos as apresentações.
Depois da cena congelar, as crianças ficaram extasiadas! Queriam apontar o que havia de errado, que tipo de comportamento era opressor… quase não se seguravam para transformar aquilo para algo positivo. Foi realmente comovente. A cada peça, uma surpresa, uma reação diferente, uma reflexão nova. A consciência daqueles pequenos era realmente algo admirável.
Ao final de todas as peças, agradecemos aos pequenos e aos professores que disponibilizaram o tempo para nós. O Volcy conversou com as crianças e explicou que ele era realmente deficiente visual e as crianças descreveram para ele como era o lugar onde estávamos. Uma cena marcante.
Fizemos uma grande roda entre os integrantes e discutimos alguns pontos relevantes da atividade. Ficamos todos muito contentes como elas entenderam o objetivo da dinâmica e como procuraram realmente resolver as coisas. Um fato que me chamou atenção foi o delas terem percebido coisas que aos nossos olhos não eram “opressões”, e me fez refletir que fazemos isso diariamente, sem nos perceber. Tomamos situações opressoras como “normais” e seguimos nossa vida como se o problema não existisse.
Quando a gente caminhava para a van, notei que a Emily, uma das organizadoras do projeto e da atividade, chorava, bastante emocionada e comovida com toda a atividade daquele dia. Não me contive. Num longo e apertado abraço agradeci a ela a oportunidade de viver aquela simplicidade, aqueles ensinamentos e a experiência única com aquelas crianças tão inteiramente entregues àquilo que apresentamos.
Esportes para deficientes
O almoço foi numa pequena praça de uma cidade vizinha. Ovos cozidos, cucas, frutas, bolos, um picnic divertido que dava início a mais um dia de novas atividades e experiências. Sylvian seria nosso instrutor naquele dia e por conta da logística das atividades que participaríamos, tivemos que dividir o grande grupo em dois.
Torball, Goalball ou Golbol
O primeiro grupo ficou ali. Sylvian faz parte do comitê de esportes para deficientes e a proposta da atividade com ele era justamente conhecer estes esportes através da prática. Começamos com o Torball, ou Golbol para nós do Brasil. O objetivo é simples: fazer gol! Que baita novidade, né? Mas pera lá que não é tão simples assim.
Lembrando que é um esporte para deficientes visuais, a quadra tem três cordões perpendiculares bem no seu centro e a bola precisa passar por baixo desses cordões, sem tocá-los. Se ouvir o sino das cordas, você já perdeu o gol. Aliás, a bola também tem uns sininhos dentro, que indicam sua localização, e uns furos para facilitar o seu lançamento.
São três jogadores para cada lado e é preciso bastante silêncio e muita concentração para ouvir a bola e saber onde ela está. É possível dar passos à frente, desde que não tocar no cordão central, e passar a bola de um jogador para o outro a fim de tentar o melhor “chute” a gol.
Futebol
Eu nunca fui bom no futebol. Até jogo, ainda hoje, mas sou muito perna de pau. No basquete eu me garanto, agora no futebol, sou muito ruim. Imagina vendado, então? Bom, não exatamente vendado. O Sylvian nos deu um tipo de máscara que imitava algumas deficiências visuais, então existia uma máscara, por exemplo, com a visão periférica bastante limitada, outra que permitia ver somente a parte periférica do campo de visão.
Antes de efetivamente entrar em ação na partida, Sylvian nos organizou algumas atividades até que estivéssemos mais familiarizados com o som da bola, com a localização espacial na quadra e também com as diferentes deficiências que provaríamos. Não existia uma corrida em linha reta com a bola dominada que fosse simples com aquelas máscaras. Mesmo você colocando todo o foco na sua audição, o pouco que se enxergava através da máscara roubava a atenção e limitava seus movimentos. Um exercício e tanto.
Na hora do jogo, um show… de comédia. Mesmo levando a atividade realmente a sério, nos esforçando para ganhar a partida e tudo, a dificuldade era enorme. Todos estávamos cientes que não era em uma tarde que nos adaptaríamos às condições, mas nos fez refletir muito sobre as dificuldades que os deficientes vivem no dia a dia.
A França que pouca gente vê
O segundo grupo faria um caça ao tesouro pela pacata cidade, com desafios que colocavam à prova nossa capacidade de se comunicar com locais – que quase nunca falavam inglês –, o espírito colaborativo e nossa criatividade. Passávamos pelas praças tentando negociar batatas em troca de alguma coisa da pessoa, podia ser uma caneta, como foi o caso do nosso grupo.
Um senhor, ainda confuso ao nos ver com aquela batata em nossas mãos, tentava traduzir as nossas mímicas e as palavras aleatórias em Francês que volta e meia eram pronunciadas. Quando ele conseguiu mais ou menos entender, pegou a caneta do seu bolso e nos deu. Era uma bic preta. Entregamos a batata e com calorosos merci beaucoup, saímos contentes e saltitantes pela rua. A gincana me fez retroceder alguns anos de vida.
Um dos pontos da caça ao tesouro era de visitar uma das pequenas lojas de artesanias de porcelana. A cidade era bastante conhecida por seu artesanato lindíssimo e os organizadores queriam nos mostrar isso. Poderíamos escolher qualquer uma delas (apontadas com endereços) e ir lá.
Entramos com muito cuidado e atenção para não esbarrar em nada porque tudo aquilo era tão lindo. Fomos recepcionados por uma moça muito querida e atenciosa, que nos fez a gentileza de nos mostrar todo o processo de produção do seu artesanato. Era uma coisa muito trabalhosa e que demandava muito tempo e técnica da artesã. Era o primeiro cozimento a tal temperatura, daí uma camada de não sei mais o que, outro cozimento que não poderia passar tanto tempo nem tal temperatura. Todo esse processo explicava o valor de algumas peças que estavam à venda.
Eu tenho o hábito de presentear minha mãe e minha tia com ímãs de geladeira dos lugares onde eu passo. Não de todos, mas daqueles mais significativos eu faço bastante questão de comprar. Vi um muito simples, pequeno, mas muito bonito também, em forma de coração e cuidadosamente pintado. Perguntei para a moça quanto era, mas quando fui pegar minha carteira para pagá-la, notei que havia deixado no camping. Cochichei para um amigo e ele também não tinha dinheiro. Eu só precisava de 5 euros. Quando eu fui perguntar pra outra amiga se ela poderia me emprestar, a moça, com um sorriso único e uma sensibilidade daquelas que nos deixa com vontade de beijar a pessoa, me disse: Fale para as pessoas sobre a nossa cidade, sobre a nossa cultura, sobre a nossa gente. Esse é um presente meu para você.
Na hora eu fiquei sem reação, meio desconcertado, na verdade, porque mais gente comprou umas lembranças ali e só eu que tinha sido presenteado. Mas logo que passou o choque, e depois da turma se espalhar um pouco, estiquei meus braços numa análise para saber se poderia abraçá-la, e ela novamente sorridente retribuiu.
Abraços, pra mim, são gestos únicos.
Continuação
Eu dividi o post em duas partes mais ou menos iguais em extensão para que não ficasse muito cansativo. Se você tá ainda no gás para ler mais, clica aqui e vai para a segunda parte que é tão legal quanto essa primeira. Se não, volta mais tarde para ler, sem problemas…