Esse post é uma continuação
Eu dividi o post em duas partes mais ou menos iguais em extensão para que não ficasse muito cansativo. Se você veio pra cá diretamente, clica aqui para ler a primeira parte. Se você já leu, manda a ver nesse aqui, então.
No final do dia
No final de cada dia nos reuníamos em um grande círculo na parte externa da casa para compartilhar nossos pensamentos e aprendizados do dia. Era um momento de completa dedicação nossa. Mesmo com as algumas barreiras linguísticas, todos faziam questão de exprimir aquilo que estavam sentindo e pensando depois das atividades, o que haviam gostado e até apareciam sugestões para as próximas atividades. Era um momento bem emocionante porque em algumas atividades, naturalmente deixávamos de observar a questão da deficiência visual. Naquela hora ali os organizadores faziam questão de trazer a temática para que nos déssemos conta de que aquela experiência era para causar essa reflexão, esse desconforto por “ignorar” a situação. E funcionava muito bem.
Depois o relaxing time. Alguns corriam para o banho para aproveitar a água quentinha ainda do final da tarde – sim, era a luz do sol que mantinha a água quente, mesmo havendo uma espécie de gerador para aquecê-la em caso de necessidade. Nos reuníamos à mesa e começavam os preparativos para a janta.
Cada noite era um jantar típico de uma nacionalidade diferente. Óbviamente as pessoas daquela nacionalidade ficavam responsáveis pela preparação das comidas e bebidas. Algumas refeições eram realmente elaboradas, com entrada, prato principal e até sobremesa, que normalmente vinha acompanhada com alguma coisa alcoolica junto. Antes que todos começássemos a comer, os responsáveis pela comida apresentavam os pratos e diziam do que era feito, em que ocasião normalmente era consumida e etc. Eu tentava me envolver um pouco durante o processo de preparação para ajudar e para tentar aprender alguma coisa diferente também, mas no fim sempre acabava mais tumultuando tudo do que efetivamente ajudando 🙂
Após a janta se fazia uma apresentação cultural do País. Era uma parte muito legal pois aprendíamos coisas além daqueles estereótipos ignorantes que todos têm a respeito dos lugares. Todos procuravam descrever o País através da política, das pessoas, dos lugares. Coisas que me inspiraram profundamente a viajar mais e a visitar aquelas pessoas tão especiais com quais eu compartilhava aquele intercâmbio. Ah, a gente tentava até cantar o Hino Nacional dos Países. Tente ler isso aqui:
Kde domov můj, kde domov můj?
Voda hučí po lučinách,
bory šumí po skalinách,
v sadě skví se jara květ,
Sim, essa era a nossa mesma reação. Depois existia a tradução para o Inglês de forma que todos pudessem entender o que estava sendo cantado e mais uma vez se mostrava o orgulho que as pessoas têm de pertencerem à sua Pátria, apesar dos problemas que existem em todos Países.
Tudo encerrado, era a hora da diversão. Música e danças típicas do País somadas às bebidas, também típicas, transformavam a noite sempre numa grande festa. Risadas, movimentos estranhos, o “eu não vou dançar isso” era quase como um “Vem cá! me puxa que eu vou dançar!”. Um lugar especial, com pessoas excepcionais, numa energia única de respeito e amizade.
Olhe ao seu redor
Você vê? O quê? Aqui em Balneário Camboriú – e isso eu comentei naquela primeira atividade que descrevi ali em cima – até que temos uma infraestrutura para os deficientes visuais. As calçadas, boa parte delas – pelo menos as do centro – têm os guias para que os deficientes consigam saber quando parar e quando seguir sem obstáculos, porém não se vê um semáforo sequer com o sinal sonoro para essas pessoas poderem atravessar a rua com segurança. Nunca ouvi falar de algum movimento ou ONG que tentasse mudar isso. Pode doer ler isso, mas o fato é que a gente não se sensibiliza com essas coisas.
Estamos tão cegos nas nossas tarefas diárias, na nossa corrida para manter nosso estilo de vida, na nossa preocupação em pagar as contas, que não olhamos realmente ao nosso redor. E aqui falo por mim também. Quantas vezes deixamos de ajudar alguém, de doar alguma coisa, de fazer um pequeno agrado para alguém em necessidade?
Há algum tempo me peguei nesse questionamento quando estava indo para a casa de uma amiga comer sushi. Parei no mercado para comprar um vinho e ao sair, vi uma moça com seu filho, sentados perto do mercado com a caixinha de moedas à sua frente. Retornei, comprei alguns salgados e bolachas doces e dei pra eles. Por quê a gente deixa de ajudar?
Enfim, voltando para o projeto. No outro dia visitamos uma escola de braile. Estávamos todos cansados do dia anterior, e as brincadeiras no decorrer da festa ainda foram até tarde. Alguns ainda estavam com as caras pintadas por conta delas, inclusive, o que causava risos nas pessoas que passavam por nós na rua.
Era uma estrutura impressionante. Um prédio de alguns andares, que atendia pessoas da cidade e de outras cidades vizinhas, das mais diferentes faixas etárias e de condições sociais. Descobrimos que, na França, o deficiente visual recebe uma ajuda financeira do Estado para complementar sua renda e manter um mínimo de qualidade de vida. Aqui também pudemos experimentar outras diferentes deficiências visuais com um óculos de papel, cada um explicado pela responsável do lugar.
Uma senhora francesa muito simpática contava sua história de vida e suas histórias da vida durante toda a nossa pequena palestra. Ela era uma senhorinha muito comunicativa e muito aberta, e ficou contente ao ver o interesse de jovens de diferentes partes do mundo pelo assunto tão delicado e que é tão esquecido pelas pessoas. Aprendemos, ou melhor, tentamos aprender a ler em Braile e escrevemos nossos nomes em pequenos pedaços de papel.
No começo do projeto nos foi sorteado, para cada um, um nome de outro integrante. Deviamos fazer pequenas gentilezas para essa pessoa ao longo do projeto e ao final tentaríamos descobrir quem era. Eu recebi, em braile, uma mensagem do meu amigo secreto: “Gabriel, be happy. Your secret friend xoxo”.
A beleza da vida de campo
Já falei um pouco sobre Bédeille no começo do post, né? Nessa altura talvez vocês tenham já observado que o estilo de vida das pessoas que organizaram o evento é bem sustentável. A casa não tinha qualquer luxo, a comida era toda orgânica e os cafés da manhã eram abundantes em queijos de diferentes animais e tipos, além de geleias e pães caseiros. Tudo isso era proveniente de famílias da própria cidade.
Em um dado dia fizemos uma outra gincana bem legal que fez eu me apaixonar por aquele lugar e por aquelas pessoas. Tá, não precisa muito para eu me apaixonar, mas aquele dia aconteceu bastante coisa. A gincana era de fazer tortas salgadas com ingredientes doados pelos vizinhos. Então saímos, de bicicleta, circulando pelas chácaras vizinhas em busca de donativos. As subidas e descidas não nos desanimavam. Chegamos à casa de uma família muito gentil, da Inglaterra. Eles nos convidaram para entrar e conhecer a horta deles e o jardim. Eles mesmos cuidavam de tudo e nos contaram que 70% do tempo deles era dedicado à manutenção e cuidados com a plantação. Naquela hora me deu vontade de largar tudo o que eu tinha de planos e ficar por ali mesmo. Juro.
Dando continuidade às práticas esportivas, o grupo foi novamente dividido por questões logísticas. Eu fiquei animado porque um dos grupos ia montar a cavalo e, apesar do pouquíssimo contato que tive com o campo, muito menos com cavalos, eu sempre fui apaixonado por eles.
Por sorte, fiquei no grupo do cavalo por primeiro. Sorte porque o primeiro grupo iria fazer todo os passos iniciais com o valo, desde escová-lo até encilhar ele antes do passeio. Embora tivesse feito isso uma única vez na vida, muito, mas MUITO tempo atrás, eu sabia como funcionava na teoria.
Partimos para a trilha. Os campos, as pastagens, o mato fechado. Eu sempre sinto muita falta desse contato com a natureza. Dava até pra estimular o cavalo nuns trotes mais rápidos. Nessas horas a líder nos convidava a fechar os olhos e confiar nos cavalos. Deixar nos levar pelo animal era uma sensação única de confiança. Na hora eu fiquei imaginando aquelas crianças que crescem com cavalos. A relação deles deve ser uma coisa lindíssima.
O que estava muito lindo e divertido tornou-se quase um pesadelo para a Annli. Ela era baixinha e por alguma razão inexplicável, escorreu para o lado enquanto o cavalo trotava e caiu. O cavalo parou de correr na mesma hora, para a sorte de todos, e fez com que todos que estavam atrás também parassem. Ela não se machucou, mas ficou bastante assustada. Ela e a Britta, que desde o começo do passeio estava nervosa porque tinha medo de cavalos. Mas a moça era corajosa e mesmo com medo aceitou o passeio.
Eu também mas confesso que em certos pontos fiquei assustado. Subíamos uma parte de um morro com pedras. A chuva da noite anterior transformara a terra em barro e as deixava escorregadia. Era mais confiança que o animal soubesse onde estava indo do que habilidade. Eu não queria cair e minha confiança era que ele também não.
Sem demais incidentes, só com os gritos engraçados da Brita pelo caminho, chegamos ao final da trilha e deixamos os cavalos com nossos colegas que estavam de bicicleta. Eles iriam retornar à fazenda pela trilha, enquanto nós iriamos voltar para casa na van.
Na “garagem” da casa tinha muitas bicicletas e algumas bicicletas tandem, aquelas de dois lugares – que agora existem até de três ou quatro lugares. A volta era grande e as subidas e descidas dificultavam bastante o percurso. Frequentemente a gente trocava de posição para que o “carona” do tandem pudesse sentir a sensação de pedalar vendado. Eu escolhi as palavras “assustador” e “libertador” para tentar descrever a sensação. Assustador porque tu precisas confiar na pessoa guiando a bicicleta. O fato de não saber onde está a pista, se vem carro ou não aumentam intensificam ainda mais o medo, mas ele é recompensado nas descidas, quando você tira as mãos do guidão, deixa a bicicleta se levar e tudo que você escuta e sente te dão uma dimensão libertadora daquilo que você só enxerga.
O que se leva daqui, afinal?
Você certamente já deve ter ouvido aquela máxima de Airton Ortiz “Somos o resultado dos livros que lemos, das viagens que fazemos e das pessoas que amamos”. Eu ainda mudaria o “amamos” por “conhecemos”, porque todos, sem exceção nenhuma, me ensinaram alguma coisa que eu carrego até hoje. Eu acredito muito que temos a chance de aprender com todas as pessoas que nos encontramos durante a nossa existência e somos o resultado de todo esse aprendizado.
No final daquele dia receberíamos mais uma integrante para somar ao time. A Vijaya era namorada do Volcy e era nascida na Índia. Ela chegou distribuindo simpatia e carisma, curiosa a respeito da cultura de cada um. Tocou a todos nós para nos ver e conhecer.
Hoje iríamos passear numa feira de St Girons, uma pacata cidade vizinha, cortada pelas águas geladas do degelo dos Pyrénées. Alguns loucos do nosso grupo resolveram pular lá para “lavar a alma”. Eu fiquei de boas, assistindo o feito deles.
A feira da cidade atraía muitos produtores locais. Tudo feito nas fazendas das regiões ou por artesãos de outras localidades que vinham expor ali. Fiz questão de estar sempre perto do Volcy e da Vijaya para observar como eles eram tratados e quais dificuldades eles enfrentavam. A gente parava em quase todas as barracas, afinal, eram queijos, doces, pães, geleias, tudo tão deliciosamente atrativo. Só de sentir o cheiro daquilo tudo já era uma coisa deliciosa.
Paramos num pequeno restaurante para almoçar e já constatamos o despreparo – ou indiferença – do lugar. O cardápio teve de ser lido para que eles pudessem escolher o que iriam comer e beber. Durante a refeição tratamos de falar de algumas experiências e descobrimos que o Volcy tinha conhecido diversos Países já. Ele estava tentando juntar recursos para viajar à Argentina e conhecer as cataratas. Ficou brabo comigo por eu não ter conhecido ainda e eu também continuo decepcionado comigo mesmo por não o ter feito até agora (Agosto de 2016).
Continuamos a caminhada para conhecer o outro lado da feira, parando para assistir alguns músicos de rua, com uns instrumentos que eram novidade para mim. Mais à frente encontraríamos uma barraca de um cara que fazia instrumentos também. Ele pegou a mão do Volcy e da Vijaya para que eles pudessem tocar os instrumentos e objetos que ele fazia. Um dos poucos que tomou a iniciativa para proporcionar a eles isso.
Ao chegar em casa, a Julie, carinhosamente apelidada de “gnomo mandona”, propôs a atividade que marcaria, pra mim, aquela experiência. Nos arrumamos todos, como de costume, enquanto uma equipe ajudava os integrantes franceses a cozinhar. Quando todos estavam à mesa, ela e a Adelle vendaram todos nós e meu coração acelerou inexplicavelmente. Eu, que sempre faço algum tipo de palhaçada ou comentário sem graça, inclusive em horas inoportunas, fiquei sério. Apesar do clima descontraído e das risadas dos demais, eu não conseguia rir muito. Cada garfada frustrada, sem comida, me aumentava aquele incômodo. Comecei a empurrar a comida com os dedos para garantir que o garfo estaria cheio quando chegasse à boca.
O toque no colega do lado para que pudesse pegar a água.
O dedo dentro do copo para garantir que não iria transbordar.
Acabei o primeiro prato mas tinha fome ainda. Me servi, com ajuda de outros colegas vendados, mas ainda me sentia tomado por aquilo que eu não sei explicar.
Depois que alguns terminaram, a Julie convidou aos que quisessem, de manterem-se vendados e tentar circular pela casa. Afinal, já se passaram 8 dias de projeto e já conhecíamos bem os cômodos e a localização das nossas barracas. Consegui relaxar um pouco e até tentei andar pela casa.
Fui e voltei algumas vezes até a despensa. Levei a Brita. Bati a cabeça em uma porta baixinha que tinha por ali e quase me empacotei num degrau que desce da parte interna para a parte externa da casa. Escutei as risadas e os gritos de “estou perdido” daqueles que tentavam ir até a sua barraca, mas estavam lá perto dos banheiros secos, e resolvi tentar o mesmo. Fui tocando a mesa até chegar no final, mas não conseguia rir. Tentava me concentrar e lembrar da posição das colunas que sustentavam o telhado que cobria aquela parte.
Senti a grama e achei o caminho de pedra que tinha por ali. Toquei ele com as mãos para tentar alinhar a direção que eu deveria ir, atrás de mim. Me virei 180 graus e comecei a caminhar. À medida que eu me distanciava das mesas de jantar, tentava contar os passos para tentar me localizar. As vozes foram ficando distantes, quase não escutava nada. Não porque eu estava longe de todos, mas porque eu estava tentando concentrar minha atenção nos outros sentidos. Em vão.
Andei, girei, voltei – ou achava que estava voltando – e não tinha maneira de eu saber onde estava. Eu não tinha tocado nada ainda, então não fazia a menor ideia se estava perto das barracas, perto dos banheiros, perto das árvores. A única coisa que me dava um pouco de senso de direção eram as vozes dos outros, lá na mesa. Escutei uns passos perto de mim. Era o Volcy e ele me perguntou como eu estava. Disse que não fazia ideia de onde eu tava e que meu único objetivo era chegar até a minha barraca.
Rapidamente ele me envolveu num abraço lateral, me virou, contou alguns passos comigo, pegou a minha mão e colocou na lona da barraca. “Pronto, entregue.” Eu agradeci com uma risada nervosa e disse que iria tentar voltar sozinho.
Subitamente meu coração acelerou de novo. Não consegui pensar em nada. Tudo que eu pensava era em como ele conseguiu fazer isso? Como ele é capaz de driblar isso tudo? Como ele é capaz de enxergar a vida, mesmo sem poder vê-la? Como é a vida dele? Como.. como.. como.. Tirei minha venda e sentei num tronco de árvore que tinha ali perto, que junto com algumas cadeiras e uma mesa montavam um tipo de “sala de estar” na grama, e me pus a chorar incontrolavelmente. Eu, que possivelmente não estaria ali se meu tio, que falecera no ano anterior, não tivesse me deixado seu carro como herança, eu que morava num confortável apartamento em Balneário Camboriú, eu que gozava dum estilo de vida com festas, cercado de amigos e das comodidades que o trabalho dos últimos anos me haviam garantido, eu que vivia assim ainda reclamava? Como podia reclamar? Eu tinha direito de reclamar de QUALQUER coisa?
Acho que alguém viu eu chorando e quando menos esperava o Volcy chegou perto e me abraçou. Aí mesmo que tudo piorei. Meio soluçando, meio com vergonha de como eu me sentia extremamente egoísta naquele momento, eu só queria agradecer ele por tudo que ele me havia ensinado. Muito mais do que a minha barraca, ele me havia indicado um caminho que a gente deixa de ver, que na verdade é muito difícil de enxergar quando somos literalmente carregados pelas coisas mundanas, pela imagem das coisas, pelo parecer.
Aquela noite eu não consegui participar da festa. Fui dormir cedo, ainda tentando absorver tudo aquilo.
No último dia, fizemos um apanhado geral do projeto, uma conclusão. O que havíamos aprendido e o que estávamos levando dali. Aquela era o último dia e no dia seguinte cada um tomaria um rumo diferente. Teve mais choradeira. Havíamos formado uma grande família, o que é engraçado porque foram apenas 9 dias juntos. Lembrei de uma coisa que o outro Thomas, que também era da República Tcheca, me havia falado no segundo dia do intercâmbio. Ele notou também como as pessoas ficaram próximas muito rapidamente e disse que existia um porquê de estarmos ali. Pessoas de diferentes partes do mundo, de diferentes contextos sociais, com profissões e áreas de estudo totalmente diferentes. Ele não sabia qual era, mas acreditava que precisávamos, durante a nossa vida, nos encontrarmos e viver aquilo junto.
Eu, naquela hora, já com o coração apertado encaminhando para o final do último dia, também acreditava.
E essa mesma “coisa” que fez com que estivéssemos ali, nos presenteou com um anoitecer maravilhoso. Nos abraçamos sobre o mesmo tronco de árvore e admirando aquele pôr do sol que acontecia logo lá. Chegaram alguns amigos a mais e terminamos o último dia cantando e bebendo, numa energia muito linda.
Gostou do post? Compartilhe com pessoas que possam se interessar pelo relato e assista ao vídeo do projeto nesse link aqui. Ele tem uns 50 minutos de duração e as legendas estão em inglês.