A gente tava igual criança pequena prestes a ir ao parque de diversões. Eu mal tinha conseguido pregar o olho durante a noite, de tão ansioso. Tudo naquela história estava indo tão absurdamente legal que volta e meia me questionava por quê aquilo estava acontecendo comigo.
Uns dias antes eles fizeram uma “intervenção familiar” e me convenceram que ir sozinho pra essa trilha não seria uma boa ideia. Apesar de estar dentro de uma Reserva, ou seja, possuir uma boa infraestrutura, com exigência de “checkin” e da apresentação do planejamento da trilha, além de possuir boas áreas de camping e um relativo movimento, a minha pouquíssima experiência em trilhas, meu equipamento bem básico e o total desconhecimento do terreno seriam fatores de risco bem relevantes.
Saímos de manhã não muito cedo de Talca. Aquela despedida me fez lembrar da minha família… eles não faziam ideia do que eu estava prestes a fazer. Sabiam apenas que eu estava com pessoas muito legais que me adotaram na minha passagem pelo Chile. Se quiser dar uma olhada no começo dessa história, lê “a história do cachorro quente” e a do “Natal na estrada” para entender como os nossos caminhos se cruzaram.
Logo na entrada tivemos mais ou menos uma ideia do que seria a trilha. Estudamos brevemente o mapa que nos deram no checkin e decidimos alterar um pouco o planejamento inicialmente feito. O plano era ir até o Valle Venado – não confundir com Valle Nevado – , acampar. No outro dia, ir até a “Cascada del Despalmado” logo depois do café da manhã, refrescar-se e subir até o checkpoint da segunda noite. No terceiro e último dia, sairíamos de manhã cedo para subir até o “El Enladrillado”, alcançar a “Laguna del Alto”, descer e voltar para casa.
Tínhamos em mente que o primeiro dia seria o mais difícil, visto que teríamos que subir o morro, num ganho de 400 metros ao longo de 9 quilômetros, chegando ao Mirador do Valle Venado numa altitude de 1.790 metros, e depois descer até 1.035 metros numa distância de apenas 3 quilômetros. A gente não sabia desses números, é claro. A gente só sabia que ia ter que descer coisa pra caralho até chegar lá embaixo… e no outro dia iríamos subir tudo aquilo de volta. Mas era o plano e fomos em frente.
A chegada até o Mirador foi tranquila. A inclinação da trilha não era fácil, mas também não era super difícil. Encontramos diversos pontos de água, o que nos deixou bem tranquilos e nos encorajou a mantermo-nos hidratados – até mesmo para aliviar um pouco o peso da mochila. Levamos mais ou menos 4 horas para vencer os primeiros 9 quilômetros e não estávamos cansados.
Aqui de cima é possível se ver dois vulcões: o Descabezado Grande, à esquerda da foto, e o Quizapú, à direita um pouco mais ao fundo. Confesso que chegar aqui e ver o tanto que precisamos descer até chegar ao nosso camping é um tanto assustador. A distância parece ser muito grande… é quase um quilômetro pra baixo e pelo menos mais 8 pra alcançarmos o checkpoint.
Iniciando a descida eu já me assusto. A minha bota Timberland já está consideravelmente gasta e ela não me segura muito bem, provocando escorregões que quase fazem saltar meu coração pela boca. Se o único problema fosse esse, tava tranquilo, de boas. Só que se numa dessas escorregadas eu caio pra minha esquerda, é bem pouco provável que eu pare de rolar antes de chegar à base dessa montanha. Se eu tivesse sem a mochila, ainda estaria mais tranquilo, mas ela, além de pesar pelo menos uns 10 quilos, me deixa menos rápido e menos balanceado.
Seguimos em frente, com paradas rápidas para tomar água e aliviar o peso das costas. Eu evito tirar a minha mochila dos ombros porque toda vez que a coloco de volta, me parece que ela volta com 5 quilos e meio a mais, então agora eu só me deito com a barriga pra cima, sobre ela mesmo. Não é nada confortável, mas como conforto é a menor prioridade, aqui, tá tudo bem.
Chegamos à parte mais íngreme da descida. Aqui já tem mais vegetação e, consequentemente, mais lugares para se segurar. Só que o terreno aqui também fica mais liso, a terra afina e a impressão que eu tenho é que sempre estou prestes a escorregar e dar de bunda no chão. Mas no fim, isso só aconteceu umas 3 ou 4 vezes… e fica difícil de evitar o pensamento que amanhã teremos que subir tudo isso novamente.
Não sei dizer quanto tempo demoramos pra chegar até a base da montanha. Consigo ter uma ideia pelo horário das fotos: a última foto no Mirador foi às 13:53 PM e a primeira foto da base marca 17:09 PM. Ainda que esses horários não estejam de acordo com a realidade pois eu esqueci de ajustar o horário da câmera, demoramos cerca de três horas para descer os 800 metros em 3 quilômetros de trilha.
É impressionante a troca da paisagem. Lá em cima, pedras se misturavam à terra fina, perto da base, a terra vermelha e fina, e aqui embaixo, pedras grandes. Só pedras. E água. Fomos costeando o pequeno rio até que tivemos que cruzá-lo. A água fez o seu próprio rumo, empurrando as pedras mais leves e abrindo caminho por toda essa extensão. Caminhar aqui parece que cansa mais, porque manter o equilíbrio com essas pedras sob as botas é um desafio não tão fácil. Mas frequentemente encontramos a trilha de areia grossa que facilita o caminho.
A cada “travessia” do rio, aumenta meu desconforto com a bota. Ela é resistente à água, mas inevitavelmente acabei a mergulhando totalmente e meu pé ficou ensopado. A cada pisada era um ploft diferente, fora que elas ficaram mais pesadas.
Mochila no chão, pé descalço na grama e um alívio tremendo. Chegamos ao checkpoint inteiros. Exaustos, mas inteiros. Montamos rapidamente as barracas, tomamos um banho gelado, mas revigorante. Acomodei meu tripé para fazer um timelapse e já começamos a preparar a janta: macarrão instantâneo. O pão com algumas geleias serviam de acompanhamento também.
O café da manhã precisa ser reforçado. Pão, geleias, frutas, barra de cereal. Um café preto pra despertar cedinho, com o campo ainda molhado da umidade da noite. Mas pelo menos as meias que deixamos estendidas numa cerca estavam mais secas. As botas, nem tanto.
Desfeito acampamento, mochila no ombro. Antes de voltar para a cascata, resolvermos ir adiante, mais próximo ao vale que inicia a subida para o vulcão. As pedras são escuras e grandes, parece que vieram abrindo toda a vegetação. E vieram. Esse vulcão entrou em erupção em 34, e até hoje ele preserva alguma atividade, mas sem riscos de explodir. É uma paisagem que parece na lua.
Começamos o retorno para a cascata. Calculamos umas 2 horas pra alcançá-la e umas 4 horas, pelo menos, para subir o morro que descemos ontem. O ritmo da caminhada até a cascata era bom. Ter as botas molhadas já não me incomodava tanto assim, pelo contrário. Hoje eu acordei com um sentimento de satisfação. Ontem foi um dia duro e eu me sentia tão bem, tão realizado. Realmente, se estivesse sozinho, não sei se eu estaria assim tão tranquilo. Talvez nem tivesse vindo até aqui. Talvez, naquela primeira escorregada de ontem, tivesse dado meia volta. Ou pelo menos esperado alguém passar por mim para ir acompanhado, não sei.
O fato que eu estava ali. Naquele momento, eu me sentia pleno. Fazendo exatamente o que eu queria nessa viagem ao Chile. Viver a natureza, aventurar de uma maneira que eu nunca tinha feito até então, me deixar levar pelo acaso. Até aqui, o acaso tava me tratando muito bem. Essas trilhas também nos fazem refletir muito, é engraçado, mas o pensamento vem e já vai embora. Acaba sendo uma meditação. Não preciso me concetrar nem nada, é só continuar o caminho que aquele pensamento fica pra trás, assim como a trilha que nos leva.
Já se escuta o barulho da queda d’água. Nem estou tão ansioso assim para vê-la, mas meu coração ainda assim acelera. É preciso se embrenhar um pouco entre as pedras e a vegetação para alcançar a queda d’água. É alta pra caralho e a água chega com força aqui embaixo. E gelada. No início, penso e pondero, mas logo depois, ignoro qualquer possibilidade de risco, largo a mochila no chão, deixo o tripé filmando e vou até lá.
Ficamos por ali mais “un ratito”, molhei mais um pouco a careca e as botas e seguimos. A nossa frente temos ainda a subida que ainda me assusta o pensamento. É normal que se canse mais na subida, o esforço é bem maior sem dúvida. E para duas pessoas novatas nessas aventuras, é bem provável que soframos. Mochila de volta ao ombro e vamos subir.
Chegamos até a entrada da trilha de volta ao mirador. Tomamos água, comemos mais umas barras de cereal e iniciamos a subida. Agora, aquela parte final escorregadia está no início. Ela é íngreme pra burro e, embora eu me sentia mais vulnerável à queda na descida de ontem, por aqui, agora eu sofro mais pra subir, ainda que minhas botas parecem tracionar melhor.
A cada 200 ou 300 metros de trilha, mais ou menos, a gente faz uma brevíssima parada para resgatar o fôlego e continuar. É muito desgastante e exige muito principalmente do condicionamento físico. Como não temos esse bicho, somos obrigados a parar com frequência. Mas não temos pressa e estamos tranquilos. Não é uma corrida.
Não ficou mais fácil. Pelo contrário. O desgaste nessa parte foi tão grande que tá difícil vencer esse morro. Olho pra trás e o Rodrigo vem a poucos metros de mim. Aqui eu tenho total consciência de que o equipamento fez muita falta para nós. Não temos nem sequer um bastão de caminhada. Seguimos, sofridos, até um ponto que julgamos ser a metade do caminho, umas 3 horas desde que começamos a subir. Desabamos ali mesmo, exaustos. Eu largo minha mochila, deito com as minhas costas no chão e estico as minhas pernas na mochila. Ainda não estamos no nosso limite, mas andamos bem perto dele. Essa parada é mais longa. Tomamos água, comemos umas frutas, descansamos os músculos e recuperamos o fôlego completo. Daqui pra frente, vamos fazer menos paradas e tentar aumentar um pouco o rítimo, já que a subida já não é tão íngreme quanto antes.
Eu cheguei ao Mirador uns minutos antes do Rodrigo. Eu consigo ainda ver ele subindo ainda, não longe, mas com sinais bem claros de cansaço extremo. Os braços largados, as pernas como se já não respondessem mais aos comandos, só estavam no piloto automático. Eu tento encorajá-lo, gritando aqui de cima, mas depois eu me arrependi. Nessas horas eu nunca sei se é bom ou ruim vibrar com a chegada. Ao mesmo tempo que pode encorajar o outro a chegar também, pode gerar uma angústia negativa.
Finalmente o Rodrigo venceu o morro também. Mal conseguiu subir os degraus do Mirador, se atirando no banco. Ele não está só cansado, está muito emocionado. Eu largo a câmera que filmava e dou um abraço nessa pessoa que tinha me mostrado um lado que eu desconhecia sobre a estrada. Descansamos em silêncio por alguns minutos e seguimos na trilha, agora descendo levemente até alcançar o checkpoint aqui de cima, onde vamos acampar.
Acordei de madrugada pra tentar fazer aquelas fotos incríveis das estrelas, fazia frio! Na primeira noite eu já tinha sofrido bastante com a umidade e o vento lá de baixo, e aqui não é diferente. Coloquei o tripé pra fora da barraca, instalei a câmera e puxei disparador remoto pra dentro da barraca. Consegui fazer uma foto nítida… descobri logo que minha lente não conseguia captar a maravilha daquele céu. Não tem problema, eu presenciando aquela cena já me bastava. Amanheci empolgado e bem descansado.
O ponto alto dessa trilha era o El Enladrillado. Tem esse nome porque é um recorte perfeitamente horizontal em cima de um morro, e as pedras que o formam são encaixadas de forma muito simétrica. Bem na verdade eu queria ter acampado lá, mas a CONAF, que é o órgão que mantem as reservas do Chile, é bem clara: só se pode acampar nas áreas previstas. Lá em cima definitivamente não era uma dessas áreas previstas.
Mais subida pra chegar até lá. Mas nada como a de ontem. Só de lembrar já me vem um cansaço. As de hoje são bem menos íngremes, e ainda que exista um ou outro obstáculo que exige um pouco mais de esforço, não é nem um pouco cansativa.
Estávamos felizes. Enfim chegamos! Mais uma vez, coloquei o tripé ali e fiz umas fotos nossas na “entrada” do lugar. Era uma vista ampla e se via direitinho “a plataforma”. Impressionante. Enquanto caminhamos pra lá eu fico pensado: certo que isso um dia foi uma plataforma de pouso. Pena que eu não estava por aqui pra ver. Eu adoro histórias de OVNI’s, extraterrestres, e qualquer coisa que preencha um pouco esse sentimento estranho de quando eu olho lá pra cima.
Esse lugar é muito curioso. As pedras parecem ser realmente instaladas. As distâncias entre elas variam pouco e algumas têm o mesmo formato. Parecem ter, inclusive, o mesmo tamanho. Demos uma caminhada ao longo do terreno para ver tudo e nos pusemos sentados à beira da montanha. De lá se via os vulcões, a cascata e se via o quanto havíamos vencido na dura subida até ali.
As horas passavam e embora não tivéssemos pressa, queríamos respeitar o planejado. Mochila nos ombros novamente e seguimos para a Laguna del Alto. Não era longe e o terreno era bem nivelado. Ele ia costeando um pequeno vale que se formava entre uma montanha e outra, mas não era um vale “fundo”. Era quase um campo. A alcançamos sem qualquer dificuldade. Descemos até a margem para nos refrescar e notamos que havia um grupo muito bem instalado, com barracas, fogareiros e tudo. No decorrer da descida ficamos nos questionando se era realmente proibído acampar ali ou não. Mas enfim, nossa jornada foi excelente e não precisávamos burlar nada no fim para gastar mais uma noite de aventura. Estávamos satisfeitos e, sinceramente, querendo chegar logo em casa.
Eu pensava na continuidade da minha aventura Chilena, afinal, queria chegar até a Patagônia. E tinha uns vinte e poucos dias para fazê-lo, então queria chegar em Talca e já organizar tudo pra minha partida. Precisava pesquisar os melhores lugares para pegar carona, as melhores cidades para fazer de base.. enfim, estava ansioso.
O que eu não poderia sequer imaginar era a oferta que me seria feita na noite anterior à minha partida….